O bigode do primo Zé Carlos
25 de novembro de 2004 - Jose Rocha

Chego de Paranavaí, onde mora minha tia Maria Marques, com muitas histórias na bagagem, mas uma delas merece registro aqui – não que as outras não mereçam, mas deixo para contar depois, porque escrevo à prestação, como manda o regimento.

Conta meu primo Zé Carlos, morador de Querência do Norte, onde foi vereador – e presidente da Câmara Municipal – que seu largo bigode foi devidamente raspado no mesmo dia em que o presidente Lula venceu as eleições de 2002.
A importância do bigode do Zé Carlos para a família, e para o próprio Zé, claro natural, não tem parâmetro. É imperativa. Só agora, agorinha, na semana passada, vi o primo Zé Carlos, pela primeira vez, sem bigode. E ele me explicou.

Eleitores daqueles autodenominados “anti Lula” até os ossos, como foi meu pai, que, mais tarde, se arrependeu (“esse Lula é cabra macho”, me disse meu pai, já muito doente), Zé Carlos era, no segundo turno das eleições de 2002, um virtual eleitor de Zé Serra.

Mas o destino tem coisas que ninguém explica – feito aquela máxima de William Shakespeare, de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa supor a nossa vã filosofia”. E o destino tinha mesmo um desafio shakespeareano para o bom primo Zé.

Antes de ir votar, deu que Zé Carlos encontrou o então prefeito de Querência (a cidade fica no Paraná, antes que eu termine o pensamento e esqueça de dizer, como também fica Paranavaí), que lhe perguntou em que iria votar:

- No Lula é que não vai ser – respondeu, seguro, como sempre.

O prefeito argumentou que a eleição de Lula seria boa para a cidade e que o governador, sim, o governador, estava apoiando a candidatura do líder petista.

- Não dá mesmo para votar no Lula? – perguntou o prefeito.

Zé Carlos, um pensador em carne e osso, e quem o conhece, sabe do que falo, foi caminhando, alisando carinhosamente as abas do bigode.
Chegou à sessão eleitoral, esperou tranqüilamente na fila e, diante da urna eletrônica, a maior invenção do Brasil desde o bigode do Zé Carlos, esqueceu Zé Serra e, pela primeira vez, votou no PT, votou em Lula.

Em casa, passou pela esposa, Iraci, deu-lhe um beijo, disse “oi, amor” e entrou no banheiro. Passou horas lá dentro. Quando saiu, no meio do dia, estava radicalmente sem o velho bigode, para o espanto de todos – o velho bigode do primo Zé Carlos, que tinha quase sua idade.

Ele tratou de explicar:

- Raspei o bigode porque votei no Lula.

Sua filha mais velha, que estuda psicologia, olhou para o pai, preocupada. E ele tratou de encerrar o assunto, passando as duas mãos no rosto liso, lisinho de Sousa:

- Eu jurei nunca votar no Lula. Mas votei. O prefeito me convenceu. O governador apóia o homem, sabe como é... Vai ser bom para Querência. Mas desonrei minha palavra e, na minha terra, um homem que desonra sua palavra, não honra o bigode.

Zé Carlos, que, cá entre nós, e que ninguém nos leia, nasceu em Fortaleza, capital do meu querido Ceará, tem muito a ver com a região de onde nossos pais saíram: a região do Acaraú. Lá, bigode é prova de honra. Quem tem, não tira. Quem não tem, implanta.

Acho que o primo Zé Carlos não deve se chatear. Olhando daqui, deixa eu ver, e considerando que a prima Iraci deve ter gostado do maridão sem bigode, penso que ele (o primo Zé Carlos) ficou mais bonito assim. Além do mais, veja como são as coisas: essa foi a prova mais cabal de que até um bigode muda um voto ou de que um voto mata um bigode. É a democracia. Já pensou se a moda pega?

José Rocha, 44, escritor cearense, autor de cinco livros, não usa bigode.

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