ENTREVISTA: JOSÉ ROCHA
14 de agosto de 2006 - Jose Rocha


José Rocha: "Eu me sinto uma prostituta literária"

Em entrevista a Carolinna Lemos Rocha, o escritor (poeta e cronista) José Rocha, abre o coração, com uma sinceridade ferina, fala das dificuldades de se editar um livro no Brasil, critica as editoras, que não investem em novos nomes, e diz que o governo federal deveria ser mais sensível à questão literária. Leia, a seguir, a entrevista completa.

Carolinna Lemos Rocha: Por que é tão difícil se publicar livros no Brasil?
José Rocha: As dificuldades são enormes e muita gente boa desiste no caminho, porque ninguém investe em nomes desconhecidos e o Brasil tem uma cultura de se cobrar do escritor aquilo que ele criou. É, ironicamente, o que se chama de produção “independente”. Eu prefiro chamar de assalto ou de produção “Às Próprias Custas S/A”, como dizia o cantor e compositor Itamar Assumpção, ele mesmo um “independente”.

Carolinna Lemos Rocha: Você diz que muita gente boa desiste no caminho? Pode citar alguém?
José Rocha: Muita gente boa, com texto de extrema qualidade, melhor, mais infinitamente melhor que muito medalhão sem talento, desiste, sim, e posso citar alguns deles. Raimundo Rocha. Esse rapaz, que mora em Barueri, na Grande São Paulo, é hoje guarda de uma escola municipal, mas ele tem um livro publicado, em 1983, e possui um texto de rara qualidade. O Raimundo é o caso do que não desistiu. É o que parou porque tem que, antes, cuidar dos filhos, da família, sustentar os seus, para depois pensar em livro. Eu o conheço bem e sei que Raimundo Rocha (que não é meu parente) quer mais, quer uma oportunidade, mas ela não vem, nem ele a encontra. Railton Cerqueira do Nascimento, um baita poeta, de verso apurado, é genial, mas quem conhece? Ele ficou até com problemas psicológicos por conta disso e hoje vive a base de medicamentos, absolutamente desconhecido. É um crime um negócio desses. Iraci Nogueira Santana, poetisa de grande qualidade, publicou um livro e não tentou de novo. É professora de Literatura. Essa luta, muitas vezes inglória, fez com que ela parasse de publicar. Rodolfo Tokimatsu, um dos melhores poetas brasileiros que eu conheço, a quem fui apresentado pelo Maurício Kubrusly, no começo dos anos 80, pensa exatamente como eu. Rodolfo chegou a participar de uma ou outra antologia, paga por ele mesmo (e todos os que cito aqui pagaram por seus próprios trabalhos, os que conseguiram pagar), conseguiu colocar uma letra sua em uma música gravada por Kleber Albuquerque, esse baita cantor e compositor, e parou. As prioridades vão mudando.

Carolinna Lemos Rocha: Você já pensou em desistir também?
José Rocha: Pensei em desistir muitas vezes, tenho uma família para sustentar, e muitas vezes tirei do meu bolso (e da boca dos meus filhos) para publicar um livro. Eles já estão crescidos e me entendem, graças a Deus, e sabem que essa é a minha vida, que não posso desistir, não vou desistir. Sou obstinado, teimoso, acredito no que faço, senão estaria fazendo outra coisa na vida.

Carolinna Lemos Rocha: A produção independente é uma mentira?
José Rocha: Claro que é, e uma grande mentira. O sujeito, dono da “editora”, e eu falo isso com aspas, recebe pelo que vai publicar, já sai no azul, já sai ganhando, sem risco de prejuízo, e ainda coloca a logomarca da empresa dele na capa do livro. É uma piada. E todos eles, esses “editores”, entre aspas, claro, estão ficando ricos, ganhando muito dinheiro, porque o escritor novo paga pelo trabalho que ele criou. O escritor “independente” é, na verdade, um grande cliente. Quer dizer: é um paradoxo e uma grande sacanagem, para usar um termo sem frescuras. Está cheio de “editores” desse tipo Brasil afora. São os vampiros culturais. E vampiros famintos.

Carolinna Lemos Rocha: Você diz que já teve problemas sérios com um desses editores...
José Rocha Sim. Foi em 1983. Eu lancei pela editora dele meu primeiro livro, “Espelho quebrado”, com financiamento à prestação, e não consegui pagar, porque, quando assinei o contrato de “edição”, eu trabalhava numa loja de tapetes e carpetes, era, aliás, o pior vendedor, e logo fui demitido. Sem poder pagar, não pude cumprir as prestações e o sujeito apareceu na minha casa, com a mãe dele, que era advogada, e me esculhambou, na frente da minha mãe, que chorou muito. O cara disse que só tinha um jeito de liquidar a dívida: entregar todos os exemplares do livro para ele. Minha mãe implorou para que ele se acalmasse, porque eu também fiquei muito nervoso e disse poucas e boas, mas, por respeito à minha mãe (eu tinha 23 anos na época, era solteiro e morava com meus pais), entreguei os livros. Ele jogou no porta-malas e nunca mais o vi, graças a Deus, porque foi uma experiência horrível, que nunca esqueci. Nunca vou me esquecer da imagem de minha mãe chorando no portão de casa. Nunca.

Carolinna Lemos Rocha: E quem é esse editor?
José Rocha: Ele anda por aí, publicando muitos livros de muita gente nova, mas eu não pronuncio o nome do sujeito. Pronunciar o nome dele não faz parte da minha índole.

Carolinna Lemos Rocha: Você pagou para publicar todos os seus livros?
José Rocha: Eu publiquei quatro livros, um deles teve até reedição, paga por mim, e confesso que, com todas as dificuldades que existem, me sinto vitorioso, mas não satisfeito. Todas as edições dos meus livros foram pagas, mas dois desses livros foram patrocinados, um com o uso da Lei Rouanet, que é uma saída, mas não soluciona o problema da falta de patrocínio. Para que a Lei Rouanet funcione, o escritor tem que ter o patrocinador do mesmo jeito, empresário ou pessoa física. Então, dá praticamente no mesmo o nível de dificuldades para publicação de quem não usa a Lei Rouanet.

Carolinna Lemos Rocha: Como você conseguiu os patrocínios para esses dois livros e que livros foram?
José Rocha: O primeiro a ser patrocinado foi um livro de poemas, “O verbo por quem sofre de verborragia”, de 2000, pago integralmente pela Líder Imóveis, uma imobiliária da cidade de Barueri, em São Paulo. Só que eu sou amigo do dono, Humberto Domingues, desde a escola, e isso facilitou. O outro foi “Coração de Leão”, de crônicas, lançado em 2003, com uso da Lei Rouanet, mas eu já tinha o patrocinador antes mesmo de entrar com o projeto no Ministério da Cultura: a Santana Têxtil, de Fortaleza, graças à amizade com um dos empresários de lá, Raimundo Delfino Neto.

Carolinna Lemos Rocha: Como você avalia a qualidade dos seus textos?
José Rocha: Acho que tenho um bom texto, tenho o mínimo de senso crítico para saber diferenciar o que é bom do que é ruim. Não estaria publicando livros e tentando publicar outros se não acreditasse no meu trabalho.

Carolinna Lemos Rocha: Alguns nomes famosos já elogiaram sua poesia...
José Rocha A Rachel de Queiroz foi a primeira, em 1984. Trocamos algumas correspondências e ela me chamava de “talentoso conterrâneo”. O Paulo Bomfim foi já no final dos anos 80. Ele era jurado de um concurso literário que eu ganhei e me disse que um dia me veria na Academia Paulista de Letras. Acho que isso não vai acontecer, não. E o Maurício Kubrusly, que me chama de “meu poeta”. Eu o encontrei no ano passado e conversamos um pouco. Ele me perguntou o que eu andava fazendo e eu respondi: sobrevivendo.

Carolinna Lemos Rocha: Você cita muito o Tom Zé, mesmo sendo ele um músico, um compositor, e não um escritor...
José Rocha: Cito, sim, porque o Tom Zé foi um dos homens mais injustiçados desse país na questão cultural e a situação dele chegou a tal ponto de ter que conseguir emprego num posto de gasolina, como frentista. O Tom Zé estava esquecido pela mídia, fazia shows para meia dúzia, se tanto, passava dificuldades financeiras muitos sérias. No dia em que ele teria que se apresentar para o trabalho no posto de gasolina, recebeu uma ligação do David Byrne, que tinha encontrado um disco dele numa loja do Rio de Janeiro e queria lançá-lo nos Estados Unidos. Tom Zé, nesse dia, e ele conta essa história, renasceu das cinzas. O resto da história o mundo conhece, mas é esse é um exemplo do descaso para com a cultura no Brasil e um exemplo de que não se deve desistir jamais dos objetivos.

Carolinna Lemos Rocha: Por que você cita Marcus Pereira?
José Rocha: Marcus Pereira foi responsável pelo lançamento de muita gente boa na música, mas ele, um dia, se cansou, e deu fim à própria vida. Não temos mais pessoas como Marcus Pereira. Ele foi raro. Como ele, não existe, nem de longe.

Carolinna Lemos Rocha: Você é muito ligado à música, não?
José Rocha: Sim. A música me inspira. Já escrevi muitos poemas ouvindo música, do Chico Buarque, música clássica, música instrumental, Almir Sater, Renato Teixeira, Tom Jobim... Gosto muito de música.

Carolinna Lemos Rocha: Você é um maldito?
José Rocha: Esse termo, maldito, às vezes é chique e é preciso tomar cuidado com ele. Eu disse um dia desses à minha esposa que me sinto uma prostituta literária, que ainda depende do cliente para sobreviver. Tenho que correr atrás de patrocínio, que conseguir o patrocínio e isso é, para mim, de certo modo, prostituição. Muita gente não concorda, mas eu vou fazer o que? É prostituição literária, em muitos casos. Não foi o caso das duas empresas que patrocinaram dois dos meus livros, mas tem sido ao longo dos anos, só que eu não definia assim essa luta de cavar o chão com as unhas. O leitor, muitas vezes, tem uma visão errônea de que escritor ganha dinheiro, de que é bacana ser escritor, mas a maioria não sabe que temos que nos “prostituir”, cavar o chão com as unhas para colocar um livro na praça. É claro que isso não é regra, mas, na maior parte das vezes, não passamos de putinhas chatas ou somos pedintes. É vergonhoso que isso aconteça num país como o Brasil, mas não é surpresa nenhuma.

Carolinna Lemos Rocha: O que poderia ser mudado para facilitar a vida dos novos escritores?
José Rocha: O governo federal, através do Ministério da Cultura, poderia mudar as regras e facilitar as coisas. O próprio governo deveria criar mecanismos de investimento nos escritores novos. Não há uma lei para isso. Não existe um investimento direto do governo. A gente tem aí a Petrobrás, que investe forte na área de audiovisual, mas é um caso a parte. Graças à Petrobrás, o cinema brasileiro deu um salto de quantidade e de qualidade. Mas eu sou poeta, sou cronista, e a Petrobrás não investe em literatura. Acho que o governo federal deveria ser ele o grande incentivador dos novos, mas sem rodeios, sem intermediários, do governo federal para o escritor desconhecido que está nos grandes centros, nos pequenos municípios, na zona rural. Eu tenho essa esperança. Eu ainda acredito nessa possibilidade.

Carolinna Lemos Rocha: E as editoras?
José Rocha: A política das editoras brasileiras é imediatista e oportunista. Se você tem um parente famoso, se é filho de um escritor famoso, tem as portas abertas. Se você é um ex-Brig Brother, as portas estão abertas. Veja o caso da Bruna Surfistinha, que teve seu livro lançado agora no México. É uma piada. A mulher, uma ex-garota de programa, e eu não tenho nada contra elas, conta como são as melhores posições sexuais e vira best-seller. Porra! Que diabos de critério é esse que se usa para publicar um autor novo? Infelizmente, essa é a política das editoras. O lucro. Essa é a frase que move todas as editoras: o lucro. Eles estão interessados em dinheiro e em mais nada. Eu não sei o que acontece. Esse mistério eu nem consigo analisar. Não perco meu tempo mandando originais para editora. A resposta eu já conheço. É não. Mas se eu fosse um desses famosos da noite para o dia, com certeza as coisas seriam diferentes, e não precisaria ser escritor, o que é pior. Bastaria ser famoso, seja lá por qual motivo.

Carolinna Lemos Rocha: E quanto aos belos trabalhos publicados pelas editoras?
José Rocha: São raros os novos nomes que as editoras lançam, mas milagres existem. A maioria é feita de gente já conhecida do grande público. É retorno garantido.

Carolinna Lemos Rocha: E seu novo livro, o "Vazantes"?
José Rocha: Vai sair, pode apostar. Eu não desisto de nada. Nunca ninguém vai dizer que eu desisti de alguma coisa. Estou tentando a publicação e chego lá. Eu sou teimso, muito teimoso.

Carolinna Lemos Rocha: Você pretende publicar também um livro do seu pai...
José Rocha: É. Meu pai deixou muitos poemas nunca publicados, que ele nem mostrava, e, com a mesma vontade que publico os meus, vou publicar os dele. "Seu" Manoel Monteiro merece. O nome do meu novo livro, "Vazantes", é, aliás, uma homenagem a ele. O nome era outro, mas eu adotei esse, porque me lembro das vazantes onde meu plantava, nas margens do rio Jaguaribe, e que nos alimentaram, tanto a ele quanto a mim, minha mãe e minhas irmãs.

Carolinna Lemos Rocha de Sousa é estudante, aluna da Escola Municipal Dinah Maria Balestrero, de Brotas (SP)

Fonte: Carolinna Lemos Rocha



José Rocha, escritor cearense, é autor dos livros "Espelho quebrado", "Batatas fritas ao sol", "O verbo por quem sofre de verborragia", "Coração de Leão" e "Vazantes" (Editora Pontes, 2006, no prelo).


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